25 dezembro, 2008

Consciente

Foto: Riva Spinelli

Carrego comigo a insônia dos poetas e o equilíbrio dos ébrios.
Tenho uma mente que não descansa.
Sonhos e esperas perseguem
a alma inquieta num corpo preguiçoso.

Mas os dias seguem.
Não param por mim.
E enquanto eu penso,
Lá se vai mais um ano...

24 novembro, 2008

Ponto de observação


De que adianta observar a vida?
Enxergar é pouco, muito pouco...
É preciso consertar o que está errado.

Tirar os velhos das calçadas
A cola da mão do menino
A angústia da mãe faminta.

Não bastam palavras, olhar penoso -
vagos gestos de apoio ao próximo.
Sentir o incômodo da dor do outro.

Enquanto a vida desanda,
vejo as dores, passo por elas.
E se eu voltasse?

Será que o mundo mudaria de lugar?

17 novembro, 2008

eu, poeta


Desde menina, ensaio poesias.
Metros e metros de letras sobre vidas e amores.
Todos na mesma tentativa
Criar uma frase de efeito
Dessas que atravessam os séculos e inspiram gerações.
Nunca consegui...
Sou prolixa e complexa.
Não resumo pensamentos.
Minhas palavras seguem a linha dos sentimentos
Extensos e incansáveis.
Sempre querem mais!

13 novembro, 2008

Espaços


Por aquele corpo, mil mulheres passaram
Nada dele é mais segredo.
Todos os pedaços descobertos,
Poucos arrancados.

Aventuras, desventuras.
Não lembra o nome, o rosto,
Quando chegaram ou saíram -
Tão rápido.

Mas algumas ficaram.
Pedaços na lembrança, esperança, alimento.
Outras, companheiras, dia-a-dia, brinquedos de fazer feliz.
Umas, tirando o sono,
Outras, o pondo a dormir.

Das mil, sobra-lhe pouco,
O suficiente para provar que, sim,
O corpo tem coração.

................................................................

Naquele corpo, mil mulheres habitam,
Às vezes doces, outras, amargas.
Todas juntas, sem nunca se ver.

Um corpo vivo, cheio de defeitos,
Carregando uma alma em brasa
Capaz de arrancar das trevas o pior dos degredados.

Naquele sorriso, a personificação do pecado
e a cura de grandes males.
Naquele toque, o pulsar da tentação
e a serenidade para todas as inquietações.
No olhar, o desejo de mudar de lugar
e a segurança de não precisar mais ir além.

Um corpo, uma escala, um porto.
Uma só mulher que, sim,
Tem mil corações.

07 novembro, 2008

Desenredo

Foto: Riva Spinelli

A festa de casamento.
O nascimento dos filhos.
O novo emprego.
A compra do carro.
Os grandes propósitos da vida acontecendo sem medo.

Eu, do outro lado,
assistindo a tudo como a um filme que não protagonizo.
Em grandes enredos, sou só figurante.
No meu, não tem roteirista.
As cenas se inventam,
sem saber onde querem chegar.

Às vezes ação, outras, comédia,
quase sempre, romance.
Com trilha sonora nacional
E quase nenhum efeito especial -
no máximo, uma câmera lenta,
esticando os olhares que não querem se abandonar,
marcando o entrelace de dedos que se confortam,
o arrepio dos pelos do corpo.

Não sou filme com começo, meio e fim
Sou interminável seriado de TV,
sem pretensão de acabar.
Com revelações e conquistas a cada nova temporada.
Personagens chegando e saindo.
Sempre à espera do próximo episódio.

05 novembro, 2008

Na ausência dos meus...

Foto: Mack Costa

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto
expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar
com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar
às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

01 novembro, 2008

Curtas

I
O amor justifica tudo.

Até os erros - contra ele próprio.







II
Meus pecados, Deus há de perdoar.
Sem eles, certamente, eu não haveria sobrevivido.

19 outubro, 2008

Inteira

Foto: Riva Spinelli

Quase sempre foi assim:
Meio lar
Meio pai
Meios filhos
Amor pela metade.

Mas nada lhe tira os pedaços.
Desde cedo, aprendeu a dividir
Sem, no entanto, perder.
Nem se perder.

A dor de meias verdades,
Meias histórias,
Planos partidos ao meio,
Lhe transtorna a face
Embrulha o estômago.

Leva à busca de pedaços inteiros.
Amigos
Trabalho
Sorriso
Fé.

Ela própria.
Inteira.
Disposta a carregar seus meios.
Ainda incapaz de abandoná-los.

11 outubro, 2008

As coisas mudam

Século XX. Década de 80

A menina termina de almoçar e espalha lápis e cadernos pelo chão. Precisa fazer os deveres antes de começar a Sessão da Tarde. A tia segue seus os passos, acomoda-se no sofá e põe os óculos. Já passa dos 60 anos, mas as lições de português e matemática lhes são bem nítidas, o suficiente para ajudar com segurança à menina.
A televisão permanece ligada, uma presença que não atrapalha a tarefa, e ainda serve como fuga aos problemas mais complexos.
É assim toda tarde. E, toda tarde, algo interrompe o ritual dos deveres de casa, um momento que, de tão repetido, já é esperado pelos adultos.
Na TV, a arte de um gráfico surge atrás do apresentador do jornal. É hora das notícias de economia. Num salto, a menina corre com lápis e caderno na mão até a TV, aumenta o volume e ouve atenta o preço do dólar e o comportamento da Bolsa de Valores de São Paulo e Rio de Janeiro.
Anota tudo e corre novamente, agora, em busca da calculadora. Testa franzida, faz as contas, anota o resultado no caderno e caminha desolada até a cozinha. Dá a notícia num tom quase solene e preocupado. “Ouviu, vó? A Bolsa caiu de novo e eu só tenho 17 dólares hoje”.
Com ares de riso, a avó, avental ensopado à beira da pia, mesmo sem saber de que bolsa a menina tanto falava, encoraja a conversa. “Ah... e ontem, quantos dólares você tinha?” “18,40, mas já tive quase 27 antes de a Bolsa cair”.

Século XXI. Ano de 2008.

Faminta, às 20h, a mulher entra em casa. Joga a bolsa no sofá, tira os sapatos e se joga também. Estica as pernas e leva as mãos à cabeça tentando enganar uma dorzinha que a incomodava desde o começo da tarde. Pega o controle e zapeia pelos canais procurando alguma coisa interessante. “Preciso urgente de uma TV paga!”
Pára na Globo, sempre a Globo. Fátima Bernardes fala pela milésima vez sobre a crise econômica que afeta o mundo. “O presidente Lula garante que o Brasil vive seu melhor momento econômico e não será afetado. Mas os mercados não reagem à crise. O dólar já se aproxima dos dois reais e a Bolsa de São Paulo teve a maior queda da história”.

Desliga a TV, deita no sofá e fecha os olhos resignada.
Agora só falam dessa bendita crise. Quem disse que eu quero comprar dólar?

20 setembro, 2008

Por dentro


Sou apaixonada por nossa história política. Prestar atenção aos movimentos e pessoas que fazem a diferença no país - seja para o bem ou o mal - não foi imposto pelo meu trabalho, é algo que faço desde criança.

A primeira recordação política vem dos seis anos. Acompanhava cada edição do Jornal Nacional só para saber se Tancredo Neves havia melhorado. Lembro que não entendia quase nada da matéria e perguntava depois a minha avó. “Ele já tá bom?” “Ainda não...”. Então, voltava às bonecas enquanto esperava as próximas notícias.

Na noite derradeira, a cobertura da Globo não meu deixou com dúvidas. Quando a notícia foi ao ar minha, mãe fez uma cara triste, pegou a carteira de cigarros e foi para o jardim sem dizer uma palavra. Eu segui os seus passos, parei no terraço, sentei no chão, agarrei uma bola que estava por perto e chorei. Não sabia o porquê da dor e até me envergonhei um pouco dela, mas sabia que aquilo era sim um motivo para chorar. “O que foi, menina? Tá chorando por que?” “Porque Tancredo morreu. E agora?”.

Agora viria Sarney, o cara que adorava aumentar o salário da minha avó, uma servidora pública federal. Ela dizia que esse era o melhor presidente que o Brasil já teve, mas eu não gostava dele. O salário até aumentava, mas nunca dava para pagar as contas. O atraso no pagamento da mensalidade da escola era tão religioso quanto às idas de toda a família ao mercado para garantir o maior número possível de latas de leite e pedaços de carne. Eu detestava fazer feira duas vezes por semana e detestava o Sarney, aquele feioso de bigode esquisito.

Só não era mais esquisito que o Collor, que acabou com os meus sonhos de eleger Lula presidente. Tá, eu ainda não podia voltar aos 11 anos, mas se pudesse, seria em Lula. E mais uma vez está na política uma das minhas mais nítidas lembranças de infância, quando corria pela praia do Pina sacudindo uma bandeira branca com letras vermelhas, onde estava escrito: Lula 13, e cantando o hino do momento. “Lula lá, brilha uma estrela!”.

Mais uma vez, sem a menor explicação, um homem público me emocionava e me recarregava de esperanças. Não é a toa que foi por ele meu segundo choro político, no dia em que a mesma Globo comunicou que ele era o novo presidente da República. Demorou anos para isso acontecer, mas lembro de cada detalhe dos governos que o antecederam. Especialmente da farra que foi ir às ruas (escondida da minha avó, é claro), comemorar o impeachment de Collor.

Mas apesar de ser apaixonada por toda essa onda política, nunca senti necessidade de me filiar a um partido, amarrar minha crença a uma só instituição. Aprendi com o tempo - e com a própria política - a buscar a verdade nas pessoas, avaliar cada pequeno ato, confiar no mais sério, independente de legenda. Minhas manifestações públicas se resumem ao momento cara-pintada, uma caminhada de apoio a Lula na Avenida Conde da Boa Vista e várias comemorações da vitória vermelha no Marco Zero.

Chego aos 30 anos com a tranqüilidade de ter dado votos conscientes, de estar cumprindo direitinho meu papel de cidadã. Não é porque um lote de políticos sai por aí se aproveitando do dinheiro público e se envolvendo em negócios ilícitos que vou desistir de participar do processo. Quanto mais sujeira aparece, mais eu acho indispensável que pessoas do bem se alfabetizem politicamente. Porque se quem se emociona e acredita no Brasil desistir dele, aí sim, estaremos perdidos.

04 setembro, 2008

...


Ninguém sabe a hora da viagem, a data da partida, o derradeiro dia.
Em que momento chega o trem rumo à nova estação?
Qual será o som do navio escolhido para nós?
Enxergo assim o que chamam de fim, como um novo porto distante e invisível, inatingível para quem fica, um porto de mistério.
Todos iremos. Sim! Essa é a única verdade.
A vida é um caminho sem volta e, no fim, lá está ela: a morte – a pior das palavras – esperando por todos.
Mas quando?

Na velhice, cada amanhecer é uma contagem regressiva, cada anoitecer, uma vitória.
O corpo resiste ao tempo e adia a despedida, mas quando ela acontece era esperada: “Viveu muito”, nos consolamos para afastar a saudade.
A vida continua, para nós e para quem fica, só que em outras águas, distantes...

Como é terrível aceitar a viagem.
Passamos a vida construindo nosso bloco: família, amigos, lugares, hábitos.
A idéia é levá-los para sempre, fortalecer a alma.
Aí chega a hora – e nós nem sabíamos – quando vemos, alguém partiu.
Quebrou o bloco, deixou espaços vazios, nos obriga a fazer tudo de novo (mas pessoas não se substituem!)

Chato. Chato mesmo esse negócio de viagem.
Desgastante. Incômodo.
Ao menos se soubéssemos o dia, não deixaríamos para depois as declarações, os abraços, a busca de um horário na agenda para cuidar do outro.
Organizaríamos a vida antes de seu fim.

Acho que não envelheço, não vou muito longe...
Sempre quis ser a primeira a sair do bloco só para não sentir a dor de vê-lo desmontar.
Começo a acreditar que não vai ser possível.
Pedaços do meu todo estão frágeis e sofro antecipando a saudade.
Tenho medo de errar com meus amores e não ter tempo de consertar.
Quero cancelar agora, e em definitivo, todos os vôos para o além e ficar aqui cuidando do meu bloco, do jeitinho que ele está.
E pra sempre.

01 setembro, 2008

Espelho

Foto: Riva Spinelli

A marca do tempo nos olhos
Na tez amolecida e transformada
Como era aquela menina?
Perdeu-se e refez-se em novas histórias
Que, entranhadas,
Costuram todo dia o dia de amanhã
Dando pontos pra amarrar o destino.

A marca do sol nos sinais da pele
A marca do sal na tolerância da alma
Uma nova alma velha.
Marcada pela comoção, pelo afeto do outro
Pelas quedas que lhe arrancaram os pedaços.

A cada manhã, uma nova marca
No corpo não tão firme.
Na visão além do óbvio.
Nas ilusões perdidas.
Nos sentimentos amadurecidos.

Com o tempo, as pedras viram pó
E as sementes se tornam jardins
Florescendo o amor
Amor raiz, renascido, crescido
Encontrado num novo tempo.

05 agosto, 2008

Mais rápido

Foto: Aguinaldo Leonel

Eu corro.
Acordo mais cedo que o comum.
Acumulo funções.
Entre uma matéria e outra, um gole d’água.
Hidrato a boca enquanto alimento meu mundo de notícias.
Impresso, TV, internet.
Viro três num corpo só.
Cheio de energia, de vontade de andar ainda mais rápido.
Adoro correr.
O blog pode esperar.
O almoço também.
Eu não!

25 julho, 2008

Por que Clara Nunes?


Nunca fui apegada a essa história de ser fã de artistas, mas há alguns anos fui tomada de paixão por uma pessoa que não está viva e cuja lembrança nem ficou tão forte assim na minha memória.
Mas, por que logo ela?

Outro dia me perguntaram se já havia assistido a uma apresentação de Clara. “Só quando criança, mas nem lembro direito do rosto dela”. “Então você precisa ver. Tu dança igual a ela: o braço, o ombro, as mãos. Igualzinho”. Fiquei curiosa.

Meses depois ganhei o livro “Clara Nunes. Guerreira da Utopia”, de Vagner Fernandes, que terminei de ler na semana passada. E agora, enquanto fuço na internet imagens e vídeos que parecem completar partes da minha história, me pergunto a razão de estar ligada a essa mulher.

Talvez pela paixão por sambas e batucadas, pela falta de vergonha em rodar num palco ou num salão como quem reverencia “santos”. Ou pelo sincretismo religioso, por não ter medo de ser tão eclética, mesmo quando o assunto é Deus. Talvez até pela cumplicidade dupla da espera vã por filhos paridos e a sensação de que, tal como ela, não vou conhecer a velhice.

Agora, depois de ter lido tanto sobre a vida de Clara, as justificativas fariam sentido. Mas a admiração nasceu bem antes de conhecê-la. Clara Nunes morreu em 1984, quando eu tinha seis anos - uma criança com medo de palhaço, fã do Balão Mágico e de qualquer samba que me chegasse aos ouvidos. Com essa idade já cantava um monte de músicas dela.

Lembro do disco em vinil que ouvia todo fim de semana com a minha mãe, que segurava as barras de uma saia larga, dançando e cantando “O mar serenou” e “Morena d’angola”. De Clara, tenho a vaga lembrança de um vestido dourado cantando na TV “Filhos de Gandi. Badauê”. Nada além disso. Mesmo com tão pouco, foi essa a mulher eleita para ser um ídolo e seu nome escolhido, desde pequena, para ser o da minha filha.

Aproveitei as férias e dediquei a tarde inteira à pesquisa. Vi mil fotos, assisti a dezenas de vídeos, e encontrei mesmo semelhanças no jeito de dançar e até no rosto - olhos rasgados, boca imensa. Será isso, então um ídolo? Alguém que você admira por analogia?

Não sonho em ser como Clara. Nem sei se me daria bem com uma mulher de temperamento tão forte, mas, ao mesmo tempo, tão insegura. E tinha um monte de coisa nela que eu não concordo. Por isso que às vezes acho que não a escolhi, foi ela quem me elegeu para vasculhar sua memória, para ficar em meu destino.

Era ela quem estava cantando na hora em que o carro onde Marcelle e eu estávamos capotou, e eu sabia que iria dar tudo certo. É a voz dela que reconheço como cantiga de ninar, o som que me acalma e me alegra mesmo nas horas mais difíceis. Estranho um sentimento tão forte por uma desconhecida, mas se ele traz assim tanto bem... que fique.

17 julho, 2008

Férias, frio e nenhuma inspiração.

Foto: Riva Spinelli

Há tempo para tudo, eu acredito.
Tempo de criar, de inventar, de se reinventar.
Tempo de ouvir, pensar, maturar planos.
Há tempo de ir atrás e tempo de aconchegar.

No céu, o tempo é nublado.
A chuva cai vez por outra, e não deixa a roupa secar no varal.
No ar, o vento é frio, seca a garganta e arrepia os pelinhos do braço, acostumados com o mormaço recifense.
Aqui dentro, páro para ler e observar a vida dos outros passar.
Deixo a minha ficar de férias, sem criações, nem transformações.
Longe de virar notícia.

Caminho rumo ao horizonte, mas sem ir muito longe.
e se o trem parar na estação, até embarco.
Ando nessa de dar um tempo, nas palavras, nas tarefas.
Só pra recarregar a bateria enquanto não decido em qual esquina dobrar.
Até lá, resta olhar a lua cheia iluminando a noite, e pensar no futuro, que pode chegar amanhã, no mês que vem, ou nunca mais...

As boas mulheres da China


Enquanto me irrito porque meu celular continua quebrado e não sobrou dinheiro para comprar outro, muito menos para renovar a escova progressiva – que já perdeu a validade há meses – dou de cara com a vida de centenas de mulheres “sem experiência alguma de juventude e beleza”. Rejeitadas e humilhadas por maridos e fillhos. Abusadas sexualmente pelos pais. Cercadas por falsas crendices. Sem assistência alguma à saúde ou educação.

Há pouco mais de uma hora me tornei amiga de infância de Hongxue, uma chinesa de dezessete anos, violentada pelo pai desde os onze, e que encontrou uma única forma de fugir do assédio dele: ficando doente e permanecendo no hospital o maior tempo possível. Foi lá, nesse novo refúgio, que fez amigos e criou um carinho especial por um filhote de mosca, de quem cuidou até depois que ele foi esmagado.

Eu mal via a hora de Hongxue sair do hospital, dar um ninja naquele pai canalha e mostrar que se tornou uma grande mulher da China. Mas em nosso último encontro, ela soube que iria receber alta e voltar para casa. Então, passou uma mosca morta na ferida que tinha no braço - na esperança de ficar mais doente e permanecer internada. Deu certo. Ela comemorou a febre que não baixava, mas morreu de infecção, duas semanas depois.

Fechei o livro e chorei descontroladamente a morte daquela menina, que se estivesse viva, teria 50 anos. Quantas pessoas lastimaram sua partida? Talvez alguns leitores emotivos. Jamais o pai e a mãe. Esse apurado de histórias me leva a um país e uma época tão cruéis e, ao mesmo tempo, tão próximos, que chega a assustar.

O grande consolo é perceber que essas mesmas mulheres enfrentam todas as intempéries com atitudes de força, caridade e beleza, uma beleza gigante na alma, que compensa a ausência de adornos no corpo. Mas isso, para os homens chineses, não representam algo positivo. Afinal, as “boas”mulheres são frágeis, mansas e trabalham muito para sustentar as vaidades dos maridos.
Já passaram décadas desde que isso aconteceu, e nem sei se alguma coisa mudou desde então. Provavelmente, chorar agora, aqui de tão longe e depois de tanto tempo, não muda em nada a vida de nenhuma daquelas mulheres. Mas espero, ao menos, que a alma delas sinta que alguém, algum dia, se preocupou e lhes disse “sinto muito”.

28 junho, 2008

Ê, Bahia...


Para mim, acaba aqui qualquer rivalidade entre recifenses e baianos. Esgoto todas as rixas e deixo apenas as semelhanças.

Há dez anos pisei pela primeira vez em solo baiano, mas não tive interesse nem maturidade para avaliar quem era aquela gente de pele escura e carne dura. Invadi o espaço sem a menor cerimônia. Entrei e saí sem pedir licença - erro comum na adolescência. Guardei na lembrança as intermináveis ladeiras, a farra sem limite e as ruas largas.

Dessa vez foi diferente. Cheguei querendo entender por que o baiano é tão amado mundo a fora. Descobri. Porque são gente de família, trabalhadora, educada e com uma pitada de malandragem no tempero.

Minha passagem não pôde ser discreta. Carregava nas costas uma mochila enorme, atrapalhando o fluxo e denunciando o turismo. Mesmo assim, ninguém se importou. Ao contrário, sempre que possível, ajudaram com a bagagem, tornaram o fardo mais leve, e poucos perguntaram de onde eu era.

Me misturei aos rostos tão parecidos com os de todo dia, e se não fosse pelo olhar curioso e deslumbrado a cada descoberta, teria passado desapercebida na multidão que anda de ônibus, desvia dos carros e se espreme no elevador Lacerda.

A Bahia tem a maioria das coisas que me encantam no Recife, mas com um detalhe: elas são somadas. As construções são ainda mais antigas, a história mais bem preservada, as cores mais vivas, as praças mais verdes. Mais misticismo, igrejas, museus, estrutura para o turismo e, de brinde, plena receptividade.

Fomos tratados com todo carinho, bem acolhidos por um povo feliz e solícito. Uma gente sem segredos, de gestos e olhares transparentes, de muitas palavras, conversa e riso solto. Bem do jeitinho que eu gosto, mas, confesso, não esperava.

Achei que o bairrismo mútuo pudesse macular nossa relação, e fui surpreendida da melhor forma possível. Na capital ou nas ilhas, do canto mais badalado ao mais tranqüilo. O lema é um só: receber bem, cuidar do outro, sorrir e falar. Falar muito e alto, como se a vida só tivesse graça se levada ao extremo.

Por isso, tamanho encanto e a sensação do plano ter saído melhor que a encomenda. Lembro da resistência de Riva quando sugeri irmos à Bahia no feriado. “É um lugar especial. Você não pode morrer sem passar por lá”, argumentei. Não sei se a retórica valeu de alguma coisa, mas uma semana depois as passagens estavam compradas e vivemos uma bela viagem com ares de lua-de-mel.

A cada instante, um sorriso arrancado pelo esplendor de um inesquecível pôr-do-sol, de uma fortificação em ruínas, do céu mais estrelado do mundo em noite que falta luz.

Do São João de verdade o feriado não teve quase nada. Só alguns fogos e arrasta pé num arraial de Morro de São Paulo. Mas não me arrependo da troca. Os dias valeram para quebrar preconceitos e me apaixonar por mais um lugar com alma romântica e que mal vejo a hora de visitar de novo.


Fotos: Riva Spinelli

25 junho, 2008

Sem medo de avião




Comparado aos demais, esse nem era assim tão grande. Um simpático 737 estava lá, pronto para me receber. Entrei pelo tubo e senti um leve frio na barriga. Não era medo, mas poderia ser comparada à sensação de estar na fila da montanha russa.

Entrei feliz. Sentei à janela. Fiz tudo do jeito que a voz mandou. Segurei na mão de Riva. O temor da decolagem logo se transformou em euforia. Bati os pés. Sorri alto. Quase grito.

Pirei com a textura das nuvens. “Parece geleira”. “Será que dá pra pegar?”. Só depois percebi o quanto as perguntas soavam infantis quando ditas por uma mulher feita. Mas ali tudo tinha ares de novo e nesse assunto sou mesmo uma criança. E lá estava eu, menina, desafiando a gravidade, aconchegada dentro de um troço que pesa toneladas e, mesmo assim, atravessa tranquilamente o céu.

Seis e meia da manhã. O leve balanço parecia tentar me ninar. Mas resisti. O tempo era curto e gastei me admirando com cada detalhe. As figuras que nasciam nas nuvens, o Rio São Francisco, as cidades vistas na proporção de uma maquete. Tudo era motivo para surpresa e, claro, fotos! Muitas fotos.

Até que o destino apontou no horizonte. Salvador. O gigante de ferro apontou o bico para baixo e passeou pela Bahia até aterrissar no Aeroporto Luiz Eduardo Magalhães.
Fim de texto. Fim de minha primeira viagem de avião.

13 junho, 2008

Santo Antônio


Eu pedi numa oração
Ao querido São João
Que me desse um matrimônio
São João disse que não!
São João disse que não!
Isto é lá com Santo Antônio!

Eu pedi numa oração
Ao querido São João
Que me desse um matrimônio
Matrimônio! Matrimônio!
Isto é lá com Santo Antônio!

13 de junho


Para mim, por muitos anos, esse foi o dia de seguir as tradições e bater um papo sério com o santo casamenteiro. Na maioria das vezes rolava uma tensão na hora de fazer as simpatias. Algumas nunca faltavam.

Começava com os pingos de vela num prato branco. Eles caiam enquanto eu rezava e depois era só esperar até se juntarem e formarem uma letra. Resultado: a cada ano, um novo símbolo surgia na minha frente. Impossível decifrar uma letra daquilo. Esclarecimento zero!

No final da noite, antes de ir dormir, preparava a derradeira mandinga. Uma bacia de alumínio no sereno cheia de papeis dobrados boiando na água. Em cada um, o nome de um homem. Não precisava nem ser conhecido. “Pode ser que vocês ainda não tenham se cruzado”, explicava minha avó. No dia seguinte, mais decepção, pelo menos metade dos papéis estavam abertos. Afinal, com qual deles seria?

Mas minha preferida era a da aliança amarrada a um fio de cabelo. Aí vai rezando a Salve Rainha até a parte do “nos mostrai” e completa com “quantos anos faltam para eu me casar”. A resenha começava na hora de escolher a aliança. Já usei a de minha avó, da minha mãe e até a minha própria, quando já estava noiva. A cada tentativa, um susto.

Teve um ano em que a danada bateu duas vezes, fiquei toda feliz. Estava perto! Aí fiz no ano seguinte pra conferir que ia dar só uma batidinha. Danou-se. A bendita aliança parecia uma barata tonta a circular pela borda do copo. Girou e bateu tanto que cansei de esperar ela parar. Tirei do copo sem medo nem cerimônia. E comecei a pensar o que havia feito de errado durante o ano para acabar com o meu próprio casamento. Tentei ser uma menina melhor. A noiva perfeita. Quem sabe a sorte não me sorria novamente?

No outro ano, a pior das experiências: a aliança não se mexeu. Ficou lá, paradona... A mão chega deu câimbra e nada do cabelo dar sinal. Até assoprei de leve. Nada! Foi aí que desisti de perguntar a Santo Antônio quanto tempo falta para eu me casar. Meses depois, coincidência ou não, terminei um relacionamento que já durava onze anos.

De lá para cá, devota e afilhada que sou do santo, já pintei e bordei com a imagem dele. Esqueci por meses embaixo da cama, coloquei de cabeça para baixo dentro de copo d’água, da geladeira, escondi o menino Jesus... Mas também já tratei a pão-de-ló, acendi velas, fiz novenas. E hoje, apesar de ser uma “amancebada” muito feliz, não me casei de fato.

Talvez tenha sido por isso que nunca consegui entender nadinha do que o santo tentou me dizer todas as vezes que perguntei. Às vezes ele não dá aquilo que a gente pede, mas dá um jeitinho de arrumar o que a gente precisa.

24 maio, 2008

De mal com ele

foto: Riva Spinelli

O espelho anda gritando:
Feia! Feia! Feia!
Tento responder
Dou um sorriso
Troco de ângulo
Murcho a barriga
Escondo os braços
Uso corretivo, base, pó.
Nada o faz mudar de idéia:
Feia!

Passo protetor solar
Entro em mil lojas
Renovo o guarda-roupa
Experimento tudo em casa.
A resposta é implacável:
Você já foi melhor nisso.

Começo uma dieta
Fujo dos doces (o melhor dos sabores)
Conto pontos o dia inteiro
Me torno uma louca-calculadora-faminta
A barriga ronca
Bebo água.
No fim de semana, a recompensa
Um quilo a menos.
Mas o espelho ainda me odeia:
Baranga!

Clínica de estética
Uma fortuna num pacote que “pode melhorar a aparência”
Primeira sessão agendada
Investimento.
Sacrifício.
Paciência.

...

Nunca tive conflitos com meu corpo.
Agora, beirando os 30, enfrento meu primeiro piti de mulherzinha.
Nao tenho casa, carro, marido, filho, fama ou dinheiro.
Decidi que tenho obrigação de, pelo menos, ser bonita.
E o mínimo que posso me dar.

...

Persistência pode ser um bom caminho rumo à maturidade.

21 maio, 2008

De susto


E lá estava a caixa.
Sozinha.
Trancada.
Velha conhecida do felino,
que se acostumou a roçar-lhe as quinas
e brincar com cuidado ao seu redor.

Cansado de desvendar mistérios,
havia prometido:
Não abriria nada de novo.
Naquele dia não resistiu.
Deixou a pata escorregar
inclinou-se mais para dentro.

Os versos, dores e dúvidas sob a tampa
lhes saltaram aos olhos
aceleraram o peito
esfriaram o corpo.
Depois se agarraram a sua cabeça
num ruído fatal.

Tarde demais...
O mundo girou.
A luz apagou.
A curiosidade matou o gato.

15 maio, 2008

O Detran e eu: último capítulo


Há dois dias a auto-escola me ligou informando que minha prova prática no Detran estava marcada para hoje.

- Mas, como? Ainda tenho seis aulas para fazer.
- Ah, não dá para desmarcar. Venha agora fazer as aulas.
A voz do outro lado da linha só poderia estar brincando. Ir agora?

No dia seguinte estava lá. Mudei de instrutor e revisei com bem mais segurança todos os passos cobrados no teste. Treinei das 7h às 11h e voltei para casa com uma certeza: hoje eu me tornaria uma motorista habilitada.

...

A noite de ontem foi um pesadelo. E não falo no sentido figurado da palavra. Riva - com muita tosse e uma febre insistente - sofreu a noite inteira. Eu, com a cabeça a mil, querendo obrigar o corpo a dormir. O sono só chegou após a meia noite, e veio acompanhado de pesadelos. Confusos, perturbadores. Sonhei com a prova. Senti angústia. Melhor não dormir mais...
...

Levantei às 5h30 e, apesar do mau presságio da noite, não estava nervosa. Aproveitei para dormir no carro a caminho do Detran onde, mais uma vez, esperei quase duas horas para começar a prova.

Enquanto isso, a chuva castigava o Recife. Não era garoa, mas tempestade, daquelas com ventania e pingos largos fazendo barulho no capô dos carros. A roupa já estava úmida, os braços tremiam de frio e comecei a pensar o quanto seria complicado fazer minha primeira baliza oficial debaixo de um “super-toró-atômico”. Apesar de tudo: nada de medo. Preferi não procurá-lo.

Carimbaram minha ficha, apontaram o carro e segui. Quando entrei, o senti como velho conhecido. Sabia o que fazer e fiz. Manobra, curva, rampa, garagem. A minha frente, quase uma dezena de candidatos já havia entregado o carro aos fiscais. Fim de linha para eles.

A chuva cessou todo o tempo em que estive no pátio e segui o percurso com tranqüilidade. A impressão que tive é que nenhum fiscal percebeu que eu era mais uma candidata em análise. Eles me olhavam, indicavam com o braço a próxima tarefa, diziam no máximo um “pode sair”, e viravam de costas. Ninguém me julgou. Nem mesmo na temida baliza (que fiz muito mal, por sinal), ninguém reclamou. Extrapolei o tempo permitido e ainda assim o fiscal só pegou minha ficha e disse: “Seu tempo já foi e você ainda tá aí? Pode tirar o carro e ir embora”. “Agora mesmo, meu filho!”.

Estacionei o carro no pátio sem saber se havia ou não passado. Até que outro fiscal chegou com a novidade. “Pode deixar o carro aí. A carteira você pega em dois dias”. E virou-se.

A motorista segura virou menina de perna bamba, mas conseguiu sair do Detran pulando e sorrindo sozinha. A roupa ensopada da chuva.

06 maio, 2008

Maduro


Esse homem que amanhece,
carrega o aroma de uma nova primavera
A tez marcada
O olhar sábio
O passo firme.

Esse home que me acompanha
é melhor do que o que conheci
Tornou-se mais sereno, admirável,
confiante e confiável
Um homem de brilho, sorriso e música.

Você, amado homem,
acorda em festa e me presenteia com seu sabor
Maduro.
Gosto doce do pecado que hei de cometer
pela eternidade.

...............

Feliz aniversário!

03 maio, 2008

Invencionices


Tenho verdadeiro encanto pelas pessoas capazes de criar, porque além de gênios da observação, são mestres na execução. Os criadores percebem a necessidade de um grupo de pessoas e já se põem a fabricar algo que lhes facilite a vida. Mas isso, creio, é uma característica dos espíritos inquietos, aqueles que sempre buscam mais.

Na condição de ser totalmente adaptável, nunca havia tido nenhuma grande idéia que merecesse ser posta em prática em forma de máquina. Pelo menos até hoje, quando sinto uma falta enorme de um simulador de direção.

Queria receber agora a grande notícia de que não sou a primeira a pensar nisso e que posso acessar tal site e baixar grátis o meu simulador. Não faria questão de mandar buscar via sedex os acessórios complementares como embreagem, freio, acelerador, setas e câmbio de marchas. Eles chegariam a minha casa em três dias úteis e eu seria uma aluna de auto-escola infinitamente mais feliz, e o melhor, mais segura!

A nova lei de trânsito exige que os candidatos a uma Permissão Para Dirigir (PPD) tenham no mínimo 15 aulas práticas antes de fazer a prova do Detran. Já estou em minha oitava aula e me sinto uma verdadeira inútil no trânsito. O que não acho ser uma responsabilidade exclusivamente minha.

O tal professor da auto-escola senta ao meu lado no carro e me joga aos leões das fervilhantes ruas do Recife. Me diz a hora de passar a marcha, ligar a seta, cada movimento na hora de fazer curva e tudo mais. Ele quase não larga a direção e ainda vive apertando o freio ou trocando a marcha quando eu nem pensei em fazer isso. Poxa! O cara tem a voz toda mansa, mas dirige por mim o tempo todo! Quando vejo, acaba a aula e volto frustrada para casa...

A parte teórica da coisa foi muito mais simples, porque dependia apenas do meu esforço. Eu estudava a qualquer hora, em qualquer lugar.Me preparei de acordo com minhas necessidades e passei. Mas como posso fazer isso com a prática sem o meu simulador direção?

Se ele existisse, certamente estaria agarrada a ele nesse momento. Mas não vale ser daqueles de Fórmula 1. Tem que ser uma simulação de dia-a-dia de uma metrópole. Na tela do computador, uma rua virtual com carros, ônibus, pedestres e cachorros estaria me esperando. E eu iria experimentar a tal direção por conta própria, e por muito mais tempo que meras quinze horas de aula.

Riva acabou de me emprestar o carro (total prova de amor), para eu treinar um pouquinho. Um fiasco! Uma droga! Cometi quase todos os erros que alguém pode ter no trânsito. Assim, nunca vou me tornar uma boa motorista. E se tem uma coisa que eu detesto são os maus motoristas! O pior é que se depender das sete aulas que me restam, é assim que vou chegar ao Detran no dia da prova.

..............

Definitivamente, eu preciso de um simulador!

02 maio, 2008

Gota d'água


Salete acordou estranha: angústia, insegurança, choro preso entre a garganta e o tórax. Olhou o calendário. “Eu sabia!” Sentiu de cara que sua velha conhecida TPM veio com todo gás daquela vez. Preferiu prevenir logo o Otávio, e foi lá pelo final do almoço que ela começou.
- Amor, sabe qual mágica eu queria fazer?
- Não. Qual? – pergunta o marido sem o menor interesse.
- Queria que você tivesse pelo menos 24 horas de TPM.
- Agora, ...deu! Tu quer fazer uma mágica pra me lascar?
- Não é não, amor! Eu só queria que você sentisse o quanto eu fico desorientada, pirada, doidinha nesses dias.
Ela olhou o tempo e continuou a análise.
- Acho que só assim você pode ser mais solidário, compreender de verdade minha disfunção.
- Salete, eu reclamo da tua TPM?
- Não.
- Eu brigo porque você está descompensada?
- Não... – respondeu com olhos baixos e a voz quase miando.
- Então, porque eu precisaria sentir na pele teus problemas hormonais? Eu já te respeito com ou sem TPM.
- Tá bom. Não faço mais a mágica, – decretou, com um bico de decepção – mas já vou avisando que eu não estou bem hoje.
Segundos de silêncio. Salete adiantou-se em devorar a sobremesa. Otávio pediu o café e depois de bicar um primeiro gole puxou assunto.
- Vou fazer hoje à noite aquele reparo no encanamento.
- Ãh? Você mesmo vai fazer?
- Claro. Já sei até qual o problema.
- Ah, sabe? E descobriu como? Você não é encanador. O vazamento está terrível, já atravessa a parede. Não é melhor chamar um profissional?
- Para quê chamar alguém? Eu sei fazer. Tenho as ferramentas. Faço num instante.
- Otávio, isso não vai dar certo. Você é médico, não encanador! E se piorar? – e quase sem paciência, quis deixar a história mais prática - Eu não vou deixar! Vou ligar para alguém que sabe fazer e mando ir lá em casa amanhã.
O marido bebeu num gole só o restante do café quente, e com a língua reclamando da temperatura resolveu pôr um fim àquela conversa sem futuro.
- Você não precisa ligar para ninguém, porque eu já disse que vou fazer.
A essa altura Salete já nem lembrava do mousse de chocolate. O choro havia saído da garganta para algum lugar entre o nariz e o céu da boca. E para não desabar de raiva na frente de Otávio, pegou a bolsa e levantou-se.
- Quer saber? Faça o que você quiser! Eu desisto. – e virou-se de costas.
- Ei! Vai embora assim?
- Vou. Até mais tarde.
- Se for assim é melhor nem voltar mais! – desafiou.
Dessa vez ela nem se deu ao trabalho de olhar para trás. Atravessou aos prantos a praça de alimentação.

“Meu Deus! Ela fica doida mesmo! Melhor eu deixar tudo pingando e não mexer naquela torneira – pelo menos até o fim da semana”.

“Eu falei para aquele insensível, sem coração, que eu não estou bem... eu não estou legal... Mas ele não se importa. Ele sempre sabe fazer tudo. É o melhor em tudo! Eu é que sou a louca, a inútil. Agora quer que eu nem volte pra casa! Volto sim! Ele faça o que quiser. Fure todos os canos. Eu é que não digo mais nada! Ingrato”.

15 minutos depois...

- Alô.
- Amor?
- Oi... Você tá mais calminha, tá?
- Tô sim... Mas não briga comigo mais não...
- A gente brigou foi? Nem percebi.

Naquela noite dormiram em paz. Os pratos sujos sobre a pia.

28 abril, 2008

De passagem


Não penso o futuro
No máximo, a semana seguinte
Não planejo
Sou borboleta
Estou de passagem.

Careço da luz de hoje
E que não haja chuva
No tempo que me resta
Vôo, pouso, bailo
Dançarina do vento.

Enquanto meu texto não vem...


"Eu evito fazer psicanálise para não ficar bem resolvido. Tenho medo de que isso me impeça de crescer. Porque uma pessoa bem resolvida não fica angustiada como eu... Roendo os dedos, com crises de insegurança à noite. Elas ficam lá, pacificamente, pensando coisas sábias. Só que a falta de juízo e a inquietação construíram muito mais que as coisas sábias. Se Colombo fosse muito bem resolvido, eu não sei se ele iria ficar com um monte de marujos, navegando para ver o que tinha além do horizonte”.

Nizan Guanaes

08 abril, 2008

Simplesmente, mais uma.


Acordo. Amo Riva. Lavo a roupa, deixo os pratos para mais tarde – talvez amanhã. Trabalho no mesmo lugar há anos. Cumprimento a todos com educação e certa distância. Ligo para minha mãe e para as amigas (se der tempo). Falo rápido com voinha, conto as novas à Marcelle.

Faço compras. Não vou à igreja. Nego esmola. Temo crianças em sinais. Faço farras. Não conto piadas. Adoro ouvir histórias. Não sei cantar, mas canto assim mesmo. Às vezes bebo demais. Outras tantas faço besteiras, a maioria perdoáveis. Tenho ressaca.

Minha cara é de índia. Olhos puxados demais. Boca grande demais. O cabelo sem tinta. O rosto que todo mundo conhece alguém “igualzinha”. Não sou alta, nem baixa. Não sou gorda, nem magra. Não sou chata, nem tão simpática assim. Sou exibida, mas moderada pelo bom senso. Minha voz não é bonita, mas sei ser sexy quando necessário. Não sei falar inglês, mas brinco com meu idioma como poucos. Nunca andei de avião, mas uma vez fui de navio a Fernando de Noronha. Adio filhos, carro, viagens à Europa.

Sou bicho da noite. Adoro sambar. Fico em casa. Não faço regime. Faço brigadeiro. Assisto a filmes. Admiro os heróis. Me emociono com a caridade, o desprendimento e o voluntariado. Desligo a TV. Ligo o despertador. Amo Riva. Durmo aconchegada e feliz.

Para muitos observadores, uma vida mediana. Para mim, a que eu escolhi e lutei para ter. E agora preciso citar Dante Accioly:
“Fui bombardeado pela insegurança, pelo conformismo e pela desambição. E aceitei esse bombardeio placidamente. Deixei que os dias me transformassem nisso que sou agora. (...) Medíocre, apenas. Simplesmente, mais um”.

E sabe o que é mais grave? Mesmo percebendo nela certa tendência à mediocridade, ela não me incomoda, nem me move. Sou estática por natureza. Sem feitos notáveis na infância; uma adolescência conturbada como qualquer outra; a maturidade chegando mansa. Só os grandes sacolejos me tiram do lugar. No mais, a vida me leva e eu confio que a estrada será tranqüila e trará os devidos presentes e agruras.

Meu caminhar é ordinário, compassado. As chegadas, intermediárias, nunca em primeiro lugar. Os resultados, sempre melhores que o esperado. E é bem assim que eu gosto. Será um grande pecado não desejar ser notável?

A Dante, por me levar a pensar...

01 abril, 2008

Só uma menina

Foto: Riva (Vale do Catimbau / PE)

“Uma menina observadora, doce, tranqüila e sempre mais madura que as outras da sua idade”. Foram essas as primeiras observações feitas por minha mãe, quando perguntei quem eu era quando criança. Segundo ela, apesar disso tudo, eu era também um tanto “seca”, avessa a carinhos e dada a poucos amigos.

“Sabia o que queria. Argumentava, brigava e insistia até conseguir”, e mais: “Questionava tudo. Ouvia a resposta e voltava para o lugar, como se precisasse maturar cada aprendizado”. As informações me transportaram de volta àquele tempo. Nem lembro desde quando o silêncio era o melhor companheiro. Gostava de ficar sozinha e não costumava criar laços. Minhas companhias levavam o momento de uma atividade escolar ou de uma brincadeira – nunca com grandes grupos.

Desde o primeiro ano na escola tive apenas um amigo ou amiga na classe. Nunca mais que isso. Recordo detalhes da sala de aula: as mesinhas, os desenhos nas paredes, a letra da professora no quadro negro; mas apenas o nome de um colega por série. Os outros eram meros figurantes.

Em casa, meu lugar preferido era entre as bonecas, de quem cuidava com zelo materno e onde passava horas esquecidas. Ali mergulhava nas vidas que sonhava ter. Era magra, médica, casada com um cara lindo, mãe de duas filhas e ia com todos à praia nos fins de semana.

Brinquei de boneca até os 16 anos, quando um namorado apareceu lá em casa sem avisar e me surpreendeu deitada no chão conversando com duas Barbies. A vergonha foi tanta que resolvi encaixotar os brinquedos e relegar minhas velhas amigas ao fundo de uma prateleira.

A separação nem foi tão dolorida... A essa altura, as bonecas já haviam mesmo perdido espaço para uma outra companheira, dessa vez, inseparável: a escrita. E lá estava mais uma razão para permanecer quieta. Escrever era um momento meu que não precisava nem desejava compartilhar. Fiz minha primeira poesia aos 10 anos, aos 11 tive a primeira redação premiada, comecei a participar do jornal da escola e nunca mais parei. Adeus Medicina...

Ouvindo Mainha falar dessa menina e tentando encaixá-la em minhas lembranças, acho que ela deve ter se sentido muito sozinha. Mas logo chega à mente uma figura que prova o contrário: Fernanda, minha grande cúmplice de infância. A primeira amiga com quem dividi meu misterioso mundo. Com ares de boa moça, reservada e de sorriso largo - como o meu -, éramos como almas gêmeas. E embora não fôssemos populares, nem assediadas pelos meninos, éramos plenamente felizes.

Juntas compartilhamos amores platônicos, assistimos desde Xuxa a Barrados no Baile, ouvimos música romântica até ir às lágrimas, coreografamos Paquitas, Trem da Alegria e Menudos, dançamos Jazz, escrevemos sobre a eternidade do amor e da amizade. E chegamos ao limite de nos fazer irmãs de sangue num ingênuo ritual de dedos furados.

Queríamos cultivar um sentimento imortal, e assim seguimos, dos sete aos quinze anos, quando o capricho adolescente nos venceu e a vida tratou de nos afastar. Perdê-la foi como morrer, só que com mais dor. Murchei para o mundo e carreguei por dias um luto sufocante, um desespero, que durou até conhecer Edna, e amá-la desde o primeiro olhar. E tudo passou a fazer sentido...

Aprendi com Fernanda que a vida precisa de espaço. As pessoas e fases precisam ir para dar lugar a outras histórias. Nem mais, nem menos especiais, só novas, dentro de um novo tempo. Uma lição que por mais que eu estudasse, inventasse ou insistisse, jamais aprenderia sozinha.

Hoje, 15 anos depois, perdi a conta das despedidas, das saudades, dos amores à primeira vista, dos encontros e reencontros. Todos únicos na alegria e na dor. Histórias amarradas a mim pela eternidade, que saem sem subtrair porque já têm lugar cativo.

A menina doce, tranqüila e observadora continua aqui e morre de medo de perder gente, de mudar de lugar... Sorte a dela ter aprendido a criar laços, a dar as mãos e amadurecer com o amor.

Às amigas ausentes da vista, que sempre vão morar aqui.

19 março, 2008

Todo dia...



Chega a noite e não vejo mais a lua grandiosa, flutuando toda sua amarelidão a um palmo das águas do Capibaribe.
Saio da sala olhando o relógio. Entro no carro e aproveito o caminho para revisar o texto.
De tão ocupada, não vejo a rua, nem temo os meninos que se aproximam da janela a cada sinal vermelho.
Chego à TV, subo as escadas correndo, retoco a maquiagem, me posiciono sob os holofotes.
São seis horas.
Gravo o programa - ainda com a insegurança de uma principiante.
Tento disfarçar o cansaço de um dia que mal começou.
São seis e vinte.
Hora de entrar na ilha de edição. REW – PLAY – FWD – STOP
Ouço, anoto, ouço de novo.
Troca a fita, passa para o computador.
Rende, corta, calcula... E assim segue a noite.
A fome chega. Bebo água.
A cabeça dói. Passo a mão no olho. Bebo água.
Dentro da TV, o dia se repete em câmera lenta.
Afundo na cadeira, olho o relógio pela décima vez em dois minutos.
Programa montado e revisado.
Meia noite.
É hora de ir.
Entro no carro, dou boa noite, vencida pelo cansaço, sigo calada até em casa.
Pela janela, procuro a lua. Ela nunca está.
Desço do carro quase correndo.
A chave na fechadura antecede o melhor momento do dia.
Abro a porta e lá está ele, cochilando entre os lençóis.
Em seu olhar, a força de volta, a recompensa, a quietude.
Por mais uma noite, não tive a lua, mas o brilho dele me põe para dormir.

10 março, 2008

Descoisada




Perdi a linha, a gentileza e os bons modos e saí sem destino, apavorada com tanta falação inútil.

Movimento demais, computador lento e conversa mole desafiam minha serenidade - e ela perde.

Despenteio o cabelo, olho de banda, circulo sem rumo pela sala. Sou bicho acuado.

A paciência se perdeu no caminho até o trabalho, o bom humor não deu as caras.

Por isso não quero sorrir, nem atender ao telefone, nem fazer o jantar.

Também não vou analisar o Big Brother, só quero que Marcelo saia, e pronto!

No mais, me esqueçam.

Desejo não dizer nada, desligar o rádio e a TV, e comer muitas besteiras.

Quero tomar sorvete até enjoar, me abraçar ao silêncio e dormir até tarde.

E quando acordar, se eu der bom dia, responda;

senão, melhor não se aproximar.

Porque hoje... é bom avisar...

Hoje eu tô com TPM!

04 março, 2008

A habilitação - parte I

O dia começou mais cedo que os de costume. Acordei às seis horas, tomei café com Riva, levamos as crianças ao colégio, demos um pulo na auto-escola para pegar minha requisição e pouco depois das oito horas já estava no Detran para fazer o tão esperado exame teórico.

Desde que acabou o carnaval substitui a literatura pela leitura diária do Código de Trânsito Brasileiro (até meu novo exemplar de Gabriel Garcia Marques voltou à prateleira). Nas últimas semanas, me senti uma adolescente às vésperas do vestibular. Cheguei a recusar convites para farras, com um argumento incontestável: “Tô estudando para a prova do Detran”. As amigas balançavam a cabeça e sorriam irônicas: “Só você perde tempo estudando isso, Maxandra”. É, só eu, mas em compensação, quem tiver qualquer dúvida sobre direitos e deveres do condutor, pode me perguntar.

Estudei tudo: placas, penalidades, multas, direção defensiva, mecânica, primeiros socorros. Li, reli, fiz e refiz os questionários, desenhei possibilidades, anotei cada palavra do professor. Mesmo assim não pude evitar passar quase todo o tempo da fila de espera revisando a apostila.

Três horas de fila chega a ser uma crueldade, mas acabei tendo tempo de sobra para estudar e pensar na vida. Foi quando percebi que, de repente, o Universo planejou uma conspiração para me fazer sair do lugar.

Sou tranqüila e demente em excesso. Não tenho grandes ambições, nem costumo vislumbrar mudanças. Talvez por isso o destino precise dar um empurrãozinho de vez em quando. Então, me joga nas mãos mil oportunidades, todas ao mesmo tempo, para testar meu poder de lidar com elas. Novos rumos profissionais, possibilidade de equilibrar as finanças e até de conseguir a tão protelada carteira de motorista.

Tudo remexendo em minha cabeça, uma coisa esbarrando na outra meio sem direção, e eu tentando clarear as idéias, separar as novidades em montinhos e descobrir por onde começo. Até que chamaram meu número: 001 (a numeração virou porque mil pessoas foram atendidas antes de mim).

Entrei na sala e encarei o computador com o espírito preparado. Ensaiei uma tremedeira, mas respirei fundo e não fiquei nervosa! As respostas brotavam ao final de cada questão e em 12 minutos terminei e prova e li o veredicto: 29 pontos – APROVADA!

Fim da primeira etapa. Ah, essa foi fácil! Difícil mesmo vai ser achar um fusca pra chamar de meu...

28 fevereiro, 2008

Da saudade


Hoje acordei e sem querer já me danei a pensar na vida sem você por perto. Fui montando uma rotina diferente para tentar suprir os buracos deixados com sua partida. E assim, ainda sonolenta, arrisquei por alguns minutos refazer os passos do dia.

Em cada sala que esperava encontrar vazia, você ainda estava. Em cada almoço regado à conversa fiada, cada segredo compartilhado, e num café no meio da tarde, era seu rosto que surgia. E quando seus inquietos olhos verdes me miravam, me dava conta de que mais uma prospecção havia dado errado. Então, dava dois passos para trás, fechava os olhos e começava tudo de novo. Em vão...

Sua ida é nobre, justa e deveria ser cercada de alegria. Mas como aceitar isso, se alegria mesmo é o ritmo manso da sua voz, a sua presença sempre materna, as palavras precisas nas horas em que todos já calaram? Alegria é ter identificado desde o primeiro olhar uma grande amiga, a mais segura, pirada, madura e infante que já conheci. Sem mistérios, mas indecifrável. A verdade sem cortinas, mas com ternura.

Agora confesso o quanto vai me custar perder tanto num momento tão frágil. Não é a hora de ficar sem uma amiga, mas, ora, eu não posso escolher tudo! Resisti um mês inteiro. Tentei ser madura e racional como de costume. Hoje não deu, acordei com essa saudade que, mesmo cruel, chega como um presente para enternecer minha alma perturbada por coisas pequenas.

E o peito escurecido pela mesquinhez, a decepção e a até a raiva, volta a ser terra fértil para o amor quando sente a sua saudade.

À Gê...

12 fevereiro, 2008

As trevas depois da luz


Sou uma pessoa feliz por vários motivos. Um deles é a sorte de ter encontrado tantos irmãos e irmãs ao longo de minha curta estrada. Os nomes nem vêm ao caso, porque todos sabem que o são, mas hoje preciso citar alguns deles para contar essa história. Marcelle, minha irmã de carne; Mainha, que me pariu por mera circunstância do destino; Riva, o amor que me esteia e fortalece; e Adriana, a louca mais divertida do mundo. Foi ela quem me entregou essa semana um CD cheio de fotos do nosso carnaval. Fotos que nem precisam de legenda, mas merecem.

Por ter vivido um carnaval atípico, acabei ficando ansiosa demais para o único dia em que poderia brincar: o dia dos Amantes de Glória. Preparei a fantasia, os adereços, finalizei os detalhes. Saímos de casa no maior alto astral, com um litro de vodka embaixo do braço e muito a fim de ficar sem noção.

Chegamos tarde na Rua da Guia - local da concentração - por isso nos adiantamos em “iniciar os trabalhos”, e não ficar para trás de quem já havia começado há duas horas. Vodka, gelo, refrigerante. Mistura, distribui, vira.

- Põe logo outro, que tô com sede!
- Lá vai...
- Agora sim! Corre que o bloco tá saindo!
- ‘Simbora!

Não tínhamos dinheiro para pôr o bloco na rua esse ano. Na verdade, mal conseguimos pagar a orquestra. Mas deu certo e lá estávamos nós e a galera do Maestro Mendes juntos novamente, em mais uma segunda-feira. Os amigos, as fantasias, o estandarte cujo talabarte sempre quebra no meio do desfile, os filhos, os pais, aquele rastro verde invadindo as ruas apertadas do Recife Antigo, cavando espaço onde não cabe mais nada, mudando de plano em cada esquina e alterando o percurso. Uma alegria que só quem é de Glória reconhece e ama.

Foi em êxtase de amor, felicidade e realização que sorvi como quem bebe a vida cada gota que passava pelo meu copo e depois, pela minha vista. Não sei de onde partiu a idéia genial, mas resolvi beber tudo de todos, especialmente da garrafa que transpirava de tão gelada nas mãos de meu amigo Giba. Era whisky e eu nem gosto de whisky. Mas desejava aquele como nunca desejei outro.

E foi bem no meio da Rua Bom Jesus, entre tropeções, pulos e o hino dos Amantes, que consegui driblar a resistência do dono da garrafa e tomá-la. Bebi com gosto, uma, duas, três vezes, sei lá. Depois devolvi o prêmio a quem pertencia, virei de costas e segui o fluxo.

Àquela altura o bloco atingiu a perfeição. O verde das camisas estava mais vivo e quando eu pulava, ganhava novos tons, misturados com branco e um pouco de rosa. Então, me mexi muito, dei voltas em torno de mim mesma sem parar, braços abertos. Bem rápido, e mais rápido... Essa é minha última lembrança da segunda-feira. Uma visão pessoal e indescritível: o carnaval mais fantástico e inacreditável do mundo!!!

Depois disso, algumas breves palavras: Acorda. Samu. Coca cola. Banho. Ai, que frio! Quando acordei na terça-feira, roupa trocada, banho tomado, deitada na minha cama, olhei para Riva e tive medo de perguntar. Ele falou primeiro:

- Você tá melhor?
- Tô enjoada e tonta. A gente perdeu o carnaval, não foi?

Ele sorriu e não respondeu. As ligações foram chegando e o quebra cabeça do meu apagão foi montado. Eu desliguei logo depois da tal “rodada fantástica”, vomitei até a alma, e só voltei para casa carregada por Riva e Fábio, namorado de Adriana. Um espetáculo vergonhoso, mas devidamente registrado por esses mui amigos que, apesar da situação, tentavam me reanimar e me transportar com o maior bom humor.

O resto do dia foi de moleza no corpo, distonia, um tremor interno, tontura, dor, muita dor. Mas a ressaca física seria uma bobagem se viesse sozinha. Meu porre me deixou um presente bem pior: a ressaca moral de ter acabado com a festa das pessoas que mais amo. Com o único dia de carnaval de minha mãe, com o show de Alcione que Marcelle não viu, e o da Mangueira, tão esperado por todos (especialmente por Adriana, que deixou de ir ao desfile no Rio para assistir à Velha Guarda comigo, no Marco Zero).

Superei o mal estar e fui ao Mister Chin tentar ser útil. Corpo resolvido. Restava curar a alma, ainda doente de tanta culpa. E por isso esse post é para todos que estavam ao meu lado quando nem eu estava. Porque, diferente do que eu merecia, não tiveram mais clima de ir à farra depois de me verem desmaiada e ainda conseguiram sorrir aliviados quando me viram no dia seguinte.

- Que bom que tu está de volta... Pensei que ia te perder para sempre.
- Desculpa, gente, nunca mais faço isso!

Promessa é dívida.

06 fevereiro, 2008

Anotações de quarta-feira



Foi na sexta-feira, depois do Lili e já perto de voltar para casa que dei de cara com ele. Estava misturado a tantos outros, uns 50 talvez, e eram tão parecidos que nem sei como nosso encontro aconteceu. Só sei que ele foi o primeiro que peguei no tabuleiro. Pus na cabeça e pronto, não tirei mais.

Nesse pré-carnaval tão atípico, quando não me dediquei como de costume às fantasias e planejei só a da saída dos Amantes, aquele chapéu cruzar meu caminho na véspera do Sábado de Zé Pereira mais parecia um presente de deuses pagãos. Era colorido, mas tinha a alma verde e rosa, como a minha anda. Sem falar que me dava um ar de "show woman". Com ele na cabeça, me senti algo entre apresentador de circo e Chacrinha, e só queria dizer bem alto e de braços abertos: "respeitável público".

Sim. Ali estava meu novo companheiro
de farra. Precisava perguntar o preço, embora isso nem importasse. Não queria negociar, apenas pagar e oficializar logo que a gente pertencia um ao outro. E foi com um sorriso descarado no rosto que sai desfilando pelo Recife Antigo com o mais lindo adereço que já tive, ansiosa para o dia amanhecer e mostrá-lo a todo mundo.

Cumpri à risca a programação diurna do Carnaval: Olinda de sábado a terça-feira.
Mesmo sem fantasia, criei um look "sem noção" para cada dia, e com o chapéu na cabeça e o espírito de grande estrela da TV comecei mais uma folia de Momo. Riva comigo.















Não enfrentamos nenhuma multidão. Não acompanhamos nenhuma troça e quase não subimos ladeiras. Também não levamos banho de pistola, nem torramos a cabeça sob o sol quente. Ficamos na sombra, ouvimos frevo o dia inteiro, fizemos novos amigos, sorrimos e beijamos muito. Para hidratar, água de coco. Deu tempo até para descansar e jogar paciência nas horas de pouco movimento.

Foi assim nosso Carnaval no Mister Chin, que ainda nos proporcionou a nobre missão de alimentar foliões alegres, famintos e cansados. Um Carnaval
bem diferente dos outros anos. Mas muito, muito bom.