24 maio, 2008

De mal com ele

foto: Riva Spinelli

O espelho anda gritando:
Feia! Feia! Feia!
Tento responder
Dou um sorriso
Troco de ângulo
Murcho a barriga
Escondo os braços
Uso corretivo, base, pó.
Nada o faz mudar de idéia:
Feia!

Passo protetor solar
Entro em mil lojas
Renovo o guarda-roupa
Experimento tudo em casa.
A resposta é implacável:
Você já foi melhor nisso.

Começo uma dieta
Fujo dos doces (o melhor dos sabores)
Conto pontos o dia inteiro
Me torno uma louca-calculadora-faminta
A barriga ronca
Bebo água.
No fim de semana, a recompensa
Um quilo a menos.
Mas o espelho ainda me odeia:
Baranga!

Clínica de estética
Uma fortuna num pacote que “pode melhorar a aparência”
Primeira sessão agendada
Investimento.
Sacrifício.
Paciência.

...

Nunca tive conflitos com meu corpo.
Agora, beirando os 30, enfrento meu primeiro piti de mulherzinha.
Nao tenho casa, carro, marido, filho, fama ou dinheiro.
Decidi que tenho obrigação de, pelo menos, ser bonita.
E o mínimo que posso me dar.

...

Persistência pode ser um bom caminho rumo à maturidade.

21 maio, 2008

De susto


E lá estava a caixa.
Sozinha.
Trancada.
Velha conhecida do felino,
que se acostumou a roçar-lhe as quinas
e brincar com cuidado ao seu redor.

Cansado de desvendar mistérios,
havia prometido:
Não abriria nada de novo.
Naquele dia não resistiu.
Deixou a pata escorregar
inclinou-se mais para dentro.

Os versos, dores e dúvidas sob a tampa
lhes saltaram aos olhos
aceleraram o peito
esfriaram o corpo.
Depois se agarraram a sua cabeça
num ruído fatal.

Tarde demais...
O mundo girou.
A luz apagou.
A curiosidade matou o gato.

15 maio, 2008

O Detran e eu: último capítulo


Há dois dias a auto-escola me ligou informando que minha prova prática no Detran estava marcada para hoje.

- Mas, como? Ainda tenho seis aulas para fazer.
- Ah, não dá para desmarcar. Venha agora fazer as aulas.
A voz do outro lado da linha só poderia estar brincando. Ir agora?

No dia seguinte estava lá. Mudei de instrutor e revisei com bem mais segurança todos os passos cobrados no teste. Treinei das 7h às 11h e voltei para casa com uma certeza: hoje eu me tornaria uma motorista habilitada.

...

A noite de ontem foi um pesadelo. E não falo no sentido figurado da palavra. Riva - com muita tosse e uma febre insistente - sofreu a noite inteira. Eu, com a cabeça a mil, querendo obrigar o corpo a dormir. O sono só chegou após a meia noite, e veio acompanhado de pesadelos. Confusos, perturbadores. Sonhei com a prova. Senti angústia. Melhor não dormir mais...
...

Levantei às 5h30 e, apesar do mau presságio da noite, não estava nervosa. Aproveitei para dormir no carro a caminho do Detran onde, mais uma vez, esperei quase duas horas para começar a prova.

Enquanto isso, a chuva castigava o Recife. Não era garoa, mas tempestade, daquelas com ventania e pingos largos fazendo barulho no capô dos carros. A roupa já estava úmida, os braços tremiam de frio e comecei a pensar o quanto seria complicado fazer minha primeira baliza oficial debaixo de um “super-toró-atômico”. Apesar de tudo: nada de medo. Preferi não procurá-lo.

Carimbaram minha ficha, apontaram o carro e segui. Quando entrei, o senti como velho conhecido. Sabia o que fazer e fiz. Manobra, curva, rampa, garagem. A minha frente, quase uma dezena de candidatos já havia entregado o carro aos fiscais. Fim de linha para eles.

A chuva cessou todo o tempo em que estive no pátio e segui o percurso com tranqüilidade. A impressão que tive é que nenhum fiscal percebeu que eu era mais uma candidata em análise. Eles me olhavam, indicavam com o braço a próxima tarefa, diziam no máximo um “pode sair”, e viravam de costas. Ninguém me julgou. Nem mesmo na temida baliza (que fiz muito mal, por sinal), ninguém reclamou. Extrapolei o tempo permitido e ainda assim o fiscal só pegou minha ficha e disse: “Seu tempo já foi e você ainda tá aí? Pode tirar o carro e ir embora”. “Agora mesmo, meu filho!”.

Estacionei o carro no pátio sem saber se havia ou não passado. Até que outro fiscal chegou com a novidade. “Pode deixar o carro aí. A carteira você pega em dois dias”. E virou-se.

A motorista segura virou menina de perna bamba, mas conseguiu sair do Detran pulando e sorrindo sozinha. A roupa ensopada da chuva.

06 maio, 2008

Maduro


Esse homem que amanhece,
carrega o aroma de uma nova primavera
A tez marcada
O olhar sábio
O passo firme.

Esse home que me acompanha
é melhor do que o que conheci
Tornou-se mais sereno, admirável,
confiante e confiável
Um homem de brilho, sorriso e música.

Você, amado homem,
acorda em festa e me presenteia com seu sabor
Maduro.
Gosto doce do pecado que hei de cometer
pela eternidade.

...............

Feliz aniversário!

03 maio, 2008

Invencionices


Tenho verdadeiro encanto pelas pessoas capazes de criar, porque além de gênios da observação, são mestres na execução. Os criadores percebem a necessidade de um grupo de pessoas e já se põem a fabricar algo que lhes facilite a vida. Mas isso, creio, é uma característica dos espíritos inquietos, aqueles que sempre buscam mais.

Na condição de ser totalmente adaptável, nunca havia tido nenhuma grande idéia que merecesse ser posta em prática em forma de máquina. Pelo menos até hoje, quando sinto uma falta enorme de um simulador de direção.

Queria receber agora a grande notícia de que não sou a primeira a pensar nisso e que posso acessar tal site e baixar grátis o meu simulador. Não faria questão de mandar buscar via sedex os acessórios complementares como embreagem, freio, acelerador, setas e câmbio de marchas. Eles chegariam a minha casa em três dias úteis e eu seria uma aluna de auto-escola infinitamente mais feliz, e o melhor, mais segura!

A nova lei de trânsito exige que os candidatos a uma Permissão Para Dirigir (PPD) tenham no mínimo 15 aulas práticas antes de fazer a prova do Detran. Já estou em minha oitava aula e me sinto uma verdadeira inútil no trânsito. O que não acho ser uma responsabilidade exclusivamente minha.

O tal professor da auto-escola senta ao meu lado no carro e me joga aos leões das fervilhantes ruas do Recife. Me diz a hora de passar a marcha, ligar a seta, cada movimento na hora de fazer curva e tudo mais. Ele quase não larga a direção e ainda vive apertando o freio ou trocando a marcha quando eu nem pensei em fazer isso. Poxa! O cara tem a voz toda mansa, mas dirige por mim o tempo todo! Quando vejo, acaba a aula e volto frustrada para casa...

A parte teórica da coisa foi muito mais simples, porque dependia apenas do meu esforço. Eu estudava a qualquer hora, em qualquer lugar.Me preparei de acordo com minhas necessidades e passei. Mas como posso fazer isso com a prática sem o meu simulador direção?

Se ele existisse, certamente estaria agarrada a ele nesse momento. Mas não vale ser daqueles de Fórmula 1. Tem que ser uma simulação de dia-a-dia de uma metrópole. Na tela do computador, uma rua virtual com carros, ônibus, pedestres e cachorros estaria me esperando. E eu iria experimentar a tal direção por conta própria, e por muito mais tempo que meras quinze horas de aula.

Riva acabou de me emprestar o carro (total prova de amor), para eu treinar um pouquinho. Um fiasco! Uma droga! Cometi quase todos os erros que alguém pode ter no trânsito. Assim, nunca vou me tornar uma boa motorista. E se tem uma coisa que eu detesto são os maus motoristas! O pior é que se depender das sete aulas que me restam, é assim que vou chegar ao Detran no dia da prova.

..............

Definitivamente, eu preciso de um simulador!

02 maio, 2008

Gota d'água


Salete acordou estranha: angústia, insegurança, choro preso entre a garganta e o tórax. Olhou o calendário. “Eu sabia!” Sentiu de cara que sua velha conhecida TPM veio com todo gás daquela vez. Preferiu prevenir logo o Otávio, e foi lá pelo final do almoço que ela começou.
- Amor, sabe qual mágica eu queria fazer?
- Não. Qual? – pergunta o marido sem o menor interesse.
- Queria que você tivesse pelo menos 24 horas de TPM.
- Agora, ...deu! Tu quer fazer uma mágica pra me lascar?
- Não é não, amor! Eu só queria que você sentisse o quanto eu fico desorientada, pirada, doidinha nesses dias.
Ela olhou o tempo e continuou a análise.
- Acho que só assim você pode ser mais solidário, compreender de verdade minha disfunção.
- Salete, eu reclamo da tua TPM?
- Não.
- Eu brigo porque você está descompensada?
- Não... – respondeu com olhos baixos e a voz quase miando.
- Então, porque eu precisaria sentir na pele teus problemas hormonais? Eu já te respeito com ou sem TPM.
- Tá bom. Não faço mais a mágica, – decretou, com um bico de decepção – mas já vou avisando que eu não estou bem hoje.
Segundos de silêncio. Salete adiantou-se em devorar a sobremesa. Otávio pediu o café e depois de bicar um primeiro gole puxou assunto.
- Vou fazer hoje à noite aquele reparo no encanamento.
- Ãh? Você mesmo vai fazer?
- Claro. Já sei até qual o problema.
- Ah, sabe? E descobriu como? Você não é encanador. O vazamento está terrível, já atravessa a parede. Não é melhor chamar um profissional?
- Para quê chamar alguém? Eu sei fazer. Tenho as ferramentas. Faço num instante.
- Otávio, isso não vai dar certo. Você é médico, não encanador! E se piorar? – e quase sem paciência, quis deixar a história mais prática - Eu não vou deixar! Vou ligar para alguém que sabe fazer e mando ir lá em casa amanhã.
O marido bebeu num gole só o restante do café quente, e com a língua reclamando da temperatura resolveu pôr um fim àquela conversa sem futuro.
- Você não precisa ligar para ninguém, porque eu já disse que vou fazer.
A essa altura Salete já nem lembrava do mousse de chocolate. O choro havia saído da garganta para algum lugar entre o nariz e o céu da boca. E para não desabar de raiva na frente de Otávio, pegou a bolsa e levantou-se.
- Quer saber? Faça o que você quiser! Eu desisto. – e virou-se de costas.
- Ei! Vai embora assim?
- Vou. Até mais tarde.
- Se for assim é melhor nem voltar mais! – desafiou.
Dessa vez ela nem se deu ao trabalho de olhar para trás. Atravessou aos prantos a praça de alimentação.

“Meu Deus! Ela fica doida mesmo! Melhor eu deixar tudo pingando e não mexer naquela torneira – pelo menos até o fim da semana”.

“Eu falei para aquele insensível, sem coração, que eu não estou bem... eu não estou legal... Mas ele não se importa. Ele sempre sabe fazer tudo. É o melhor em tudo! Eu é que sou a louca, a inútil. Agora quer que eu nem volte pra casa! Volto sim! Ele faça o que quiser. Fure todos os canos. Eu é que não digo mais nada! Ingrato”.

15 minutos depois...

- Alô.
- Amor?
- Oi... Você tá mais calminha, tá?
- Tô sim... Mas não briga comigo mais não...
- A gente brigou foi? Nem percebi.

Naquela noite dormiram em paz. Os pratos sujos sobre a pia.