25 julho, 2008

Por que Clara Nunes?


Nunca fui apegada a essa história de ser fã de artistas, mas há alguns anos fui tomada de paixão por uma pessoa que não está viva e cuja lembrança nem ficou tão forte assim na minha memória.
Mas, por que logo ela?

Outro dia me perguntaram se já havia assistido a uma apresentação de Clara. “Só quando criança, mas nem lembro direito do rosto dela”. “Então você precisa ver. Tu dança igual a ela: o braço, o ombro, as mãos. Igualzinho”. Fiquei curiosa.

Meses depois ganhei o livro “Clara Nunes. Guerreira da Utopia”, de Vagner Fernandes, que terminei de ler na semana passada. E agora, enquanto fuço na internet imagens e vídeos que parecem completar partes da minha história, me pergunto a razão de estar ligada a essa mulher.

Talvez pela paixão por sambas e batucadas, pela falta de vergonha em rodar num palco ou num salão como quem reverencia “santos”. Ou pelo sincretismo religioso, por não ter medo de ser tão eclética, mesmo quando o assunto é Deus. Talvez até pela cumplicidade dupla da espera vã por filhos paridos e a sensação de que, tal como ela, não vou conhecer a velhice.

Agora, depois de ter lido tanto sobre a vida de Clara, as justificativas fariam sentido. Mas a admiração nasceu bem antes de conhecê-la. Clara Nunes morreu em 1984, quando eu tinha seis anos - uma criança com medo de palhaço, fã do Balão Mágico e de qualquer samba que me chegasse aos ouvidos. Com essa idade já cantava um monte de músicas dela.

Lembro do disco em vinil que ouvia todo fim de semana com a minha mãe, que segurava as barras de uma saia larga, dançando e cantando “O mar serenou” e “Morena d’angola”. De Clara, tenho a vaga lembrança de um vestido dourado cantando na TV “Filhos de Gandi. Badauê”. Nada além disso. Mesmo com tão pouco, foi essa a mulher eleita para ser um ídolo e seu nome escolhido, desde pequena, para ser o da minha filha.

Aproveitei as férias e dediquei a tarde inteira à pesquisa. Vi mil fotos, assisti a dezenas de vídeos, e encontrei mesmo semelhanças no jeito de dançar e até no rosto - olhos rasgados, boca imensa. Será isso, então um ídolo? Alguém que você admira por analogia?

Não sonho em ser como Clara. Nem sei se me daria bem com uma mulher de temperamento tão forte, mas, ao mesmo tempo, tão insegura. E tinha um monte de coisa nela que eu não concordo. Por isso que às vezes acho que não a escolhi, foi ela quem me elegeu para vasculhar sua memória, para ficar em meu destino.

Era ela quem estava cantando na hora em que o carro onde Marcelle e eu estávamos capotou, e eu sabia que iria dar tudo certo. É a voz dela que reconheço como cantiga de ninar, o som que me acalma e me alegra mesmo nas horas mais difíceis. Estranho um sentimento tão forte por uma desconhecida, mas se ele traz assim tanto bem... que fique.

17 julho, 2008

Férias, frio e nenhuma inspiração.

Foto: Riva Spinelli

Há tempo para tudo, eu acredito.
Tempo de criar, de inventar, de se reinventar.
Tempo de ouvir, pensar, maturar planos.
Há tempo de ir atrás e tempo de aconchegar.

No céu, o tempo é nublado.
A chuva cai vez por outra, e não deixa a roupa secar no varal.
No ar, o vento é frio, seca a garganta e arrepia os pelinhos do braço, acostumados com o mormaço recifense.
Aqui dentro, páro para ler e observar a vida dos outros passar.
Deixo a minha ficar de férias, sem criações, nem transformações.
Longe de virar notícia.

Caminho rumo ao horizonte, mas sem ir muito longe.
e se o trem parar na estação, até embarco.
Ando nessa de dar um tempo, nas palavras, nas tarefas.
Só pra recarregar a bateria enquanto não decido em qual esquina dobrar.
Até lá, resta olhar a lua cheia iluminando a noite, e pensar no futuro, que pode chegar amanhã, no mês que vem, ou nunca mais...

As boas mulheres da China


Enquanto me irrito porque meu celular continua quebrado e não sobrou dinheiro para comprar outro, muito menos para renovar a escova progressiva – que já perdeu a validade há meses – dou de cara com a vida de centenas de mulheres “sem experiência alguma de juventude e beleza”. Rejeitadas e humilhadas por maridos e fillhos. Abusadas sexualmente pelos pais. Cercadas por falsas crendices. Sem assistência alguma à saúde ou educação.

Há pouco mais de uma hora me tornei amiga de infância de Hongxue, uma chinesa de dezessete anos, violentada pelo pai desde os onze, e que encontrou uma única forma de fugir do assédio dele: ficando doente e permanecendo no hospital o maior tempo possível. Foi lá, nesse novo refúgio, que fez amigos e criou um carinho especial por um filhote de mosca, de quem cuidou até depois que ele foi esmagado.

Eu mal via a hora de Hongxue sair do hospital, dar um ninja naquele pai canalha e mostrar que se tornou uma grande mulher da China. Mas em nosso último encontro, ela soube que iria receber alta e voltar para casa. Então, passou uma mosca morta na ferida que tinha no braço - na esperança de ficar mais doente e permanecer internada. Deu certo. Ela comemorou a febre que não baixava, mas morreu de infecção, duas semanas depois.

Fechei o livro e chorei descontroladamente a morte daquela menina, que se estivesse viva, teria 50 anos. Quantas pessoas lastimaram sua partida? Talvez alguns leitores emotivos. Jamais o pai e a mãe. Esse apurado de histórias me leva a um país e uma época tão cruéis e, ao mesmo tempo, tão próximos, que chega a assustar.

O grande consolo é perceber que essas mesmas mulheres enfrentam todas as intempéries com atitudes de força, caridade e beleza, uma beleza gigante na alma, que compensa a ausência de adornos no corpo. Mas isso, para os homens chineses, não representam algo positivo. Afinal, as “boas”mulheres são frágeis, mansas e trabalham muito para sustentar as vaidades dos maridos.
Já passaram décadas desde que isso aconteceu, e nem sei se alguma coisa mudou desde então. Provavelmente, chorar agora, aqui de tão longe e depois de tanto tempo, não muda em nada a vida de nenhuma daquelas mulheres. Mas espero, ao menos, que a alma delas sinta que alguém, algum dia, se preocupou e lhes disse “sinto muito”.