22 maio, 2009

Liberta

Por algum motivo – que pode incluir até meu medo constante de ser assaltada – resolvi acompanhar os passos daquela mulher enquanto eu esperava o ônibus.
Lá vinha ela, descalça, cigarro aceso na mão, caminhando sem pressa sob a garoa que fazia brilhar a calçada da Rua da Aurora. De repente, desvia do caminho e sobe para o canteiro. Segura o cigarro na ponta dos lábios e, sem sequer olhar para os lados, baixa o short e se acocora à beira do Capibaribe.
Que cena!

Aquela bunda magra me encarando desafiadora, e eu lhe devolvendo um olhar incrédulo, vendo o xixi descer em jato entre suas pernas para depois de misturar à grama verdinha que cerca o rio.
Como o negócio demorou, a mulher deu mais um trago no cigarro. Tudo certo por ali.
Na rua, olhares abismados e comentários em sussurros a culpavam pela sujeira na cidade. Não me misturei às vozes. Só conseguia olhar, com um sorriso no canto da boca e pensar sobre liberdade.
Ela fez xixi à beira do Capibaribe!

Fez uma coisa que eu bem queria ter feito, mas não posso, por ser moça bem criada, instruída e de boa família.
A mulher descalça tem algo que eu não tenho e, sem saber, cheguei a ter medo dela.
O medo passou.
Subi no ônibus e a deixei ali, de cócoras, admirando o rio enquanto fumava um cigarro.
Definitivamente, não é dela a culpa pela sujeira do Recife.

15 maio, 2009

Ouvidora


Lá em casa é democracia: por livre e espontânea pressão, ela obedece.
...
Bi. Bi. Biiiiiii...
...
Ô, moço, me dê uma pipoca salgada.
...
Fui lá ontem, véi, arretado.
...
Vrummm. Tsssss...
...
Licença!
...
Biiiiiiii...
...
Ficou vermelho! Bora, bora.
...
- Vem um lote de ônibus ali, um deles deve servir.
- Óa, óa. É?
- É não, é Águas Compridas. Eu quero Aguazinha.
...
Vixe, eu que num queria estudar na cidade. Bando de ônibus lotado!
...
- Senta tu, mulher.
- Me dá a bolsa.
...
- Tu vai?
- Eu tenho que ver se mainha deixa.
- Minha irmã, corte o cordão umbilical, doida! Já era tempo.
...
- Pois quando eu casar, quero morar na frente da casa dela (a mãe).
- E eu vou arrumar uma casa bem distante, pra ela nem me visitar.
- Afe!
...
- Já são seis horas, é?
- É nada! Ainda tá claro!


Como Recife faz barulho numa sexta-feira à tarde.

14 maio, 2009

Noite


A lua na janela
Ilumina o rosto.
A alma se esconde à sombra
E adormece.

07 maio, 2009

Num instante

Fotos: minha mesmo

Saudade não é uma pesquisa nos cantos mais remotos da memória, nem vontade de lembrar o que a rotina faz esquecer.
Saudade é instante.
Agente está lá, de bobeira, acordando, tomando banho, andando de ônibus ou provando um tempero, quando ela chega. Veloz. Passa correndo, pega na mão do pensamento e voa com ele até onde bem entender.
Ultimamente, minha saudade é recorrente. Quando percebo, estou em São Paulo. Caminhando pelas calçadas sem risco da Av. Paulista, pelos largos corredores do Mercado Central, sentada perto dos patos, admirando o lago do Ibirapuera.
Amo aquela cidade. Se pudesse, moraria lá só para ter todo dia a segurança de caminhar à noite depois do teatro, de sair e voltar para casa sem medo de ser assaltada no primeiro sinal.
Não é a toa que a cabeça viaja tanto até lá. Mas hoje foi diferente.
Estava pintando uma caixinha de madeira – presente para voinha – quando, num passe de mágica, fui parar no jardim da casa de Zé da Rocha, na fazenda da Macuca.
Há anos não vou lá, mas lembro de cada detalhe. A casa cheia de espaços vazios, os móveis esquisitos do terraço, a falta de iluminação, a ponte, o caminho para bica e o riacho (únicos lugares onde era possível tomar banho), a barraca prateada armada no meio da noite, o cachorro pastor-alemão que vinha nos acordar logo cedo. Tenho tudo na memória.
Hoje, estava entre as flores. Aquelas cor-de-rosa, pequenas, iguais às do jardim da minha avó quando eu era criança.
Perto destas flores, tomamos café da manhã depois de uma noite de muita farra, deitamos na grama, jogamos conversa fora, cantamos, cochilamos.
As flores me lembram uma paz alegre e, na casa de Zé da Rocha, podem ser vistas até do banheiro, onde a parede de cimento abriu espaço para uma janela de vidro. Incrível! Coisas assim não dá para esquecer.
Mas não sei como fui parar lá hoje.
A saudade me levou. Tão rápido. Num instante.

06 maio, 2009

uns versos

a cada manhã, um novo homem me abraça
ele muda sim, eu sei, mas não percebo.
enxergo o mesmo menino de sempre
sedutor, sorridente, persistente
o homem que me ensinou a amar com alegria
a ser tolerante, paciente
a esperar pelos dias de sol e nunca temer a chuva
a cor dos pelos mudou, o corpo, o rosto
estão mais bonitos, mais seguros de si
e eu mudei junto,
mas ainda olho para o mesmo lugar.
onde estou.
onde vou ficar.

feliz aniversário!